A Inteligência Artificial (IA) está transformando os processos de recrutamento, mas também traz novos desafios dentro do contexto organizacional.
Antes, a principal preocupação era a veracidade das informações no currículo. Agora, a dúvida é: as habilidades demonstradas em cases técnicos são reais ou geradas por IA?
Esse debate veio à tona recentemente após uma Inteligência Artificial ganhar notoriedade por permitir que candidatos trapaceiem em entrevistas de emprego online.
Desenvolvida por um ex-aluno da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, que foi suspenso por um ano pela instituição após um processo disciplinar devido à divulgação de documentos sigilosos do próprio processo universitário, a ferramenta funciona como um assistente invisível.
Ela monitora perguntas em tempo real durante videoconferências feitas por aplicativos como Zoom, Teams e Meet, escuta o áudio do entrevistador e exibe respostas geradas por IA na tela do candidato, sem que o outro lado perceba.
Ela opera utilizando a “invisibilidade” como diferencial, não aparece em compartilhamentos de tela ou gravações, tornando praticamente impossível a detecção pelo entrevistador.
Estima-se que milhares de candidatos já usaram essa IA para garantir vagas em universidades e na busca por emprego, principalmente em grandes empresas de tecnologia, impulsionando um mercado onde os profissionais não dominam, na prática, os conhecimento demonstrados durante os processos seletivos e essenciais para a realização de tarefas do dia a dia.
Como pode ser observado, o avanço da tecnologia acelerou a seleção de talentos, mas também trouxe questões éticas. Quando usada para burlar processos, a tecnologia revela os limites tênues entre inovação, ética e fraude no ambiente corporativo.
Bora falar sobre isso?
IA: aliada ou atalho antiético?
O uso de IA durante a busca por recolocação profissional ou novas oportunidades pode ser visto como apoio legítimo quando a ferramenta é utilizada para tirar dúvidas técnicas, organizar ideias ou treinar respostas.
No entanto, quando aplicada como forma de “colar” em tempo real, a tecnologia deixa de ser aliada e passa a ser atalho antiético.
Para Bruno Nunes, especialista em tech, o grande problema nesse caso é que a IA cria uma falsa sensação de confiança e competência.

“Um candidato pode usar ferramentas para gerar respostas perfeitas em testes online ou até mesmo em entrevistas por vídeo, já que os modelos de IA estão processando informações cada vez mais rápido. Isso distorce o processo e pode até levar a contratações que não se sustentam no dia a dia do trabalho.”
Bruno Nunes, especialista em tech.
Além disso, ele explica que também existe o impacto cultural: quando alguém entra em uma equipe sem realmente dominar o que prometeu, a confiança interna e a eficiência do time são comprometidas.
O manifesto da IA utilizada para trapacear em processos seletivos, por exemplo, compara seu impacto ao surgimento da calculadora e do Google, afirmando que essa é mais uma evolução inevitável. O argumento, porém, ignora aspectos fundamentais da seleção, como autenticidade e avaliação justa de competências e habilidades.
Quais são os riscos da IA para o RH e as empresas
Raquel Paiva, especialista em RH, explica que o maior problema quando falamos sobre a utilização da Inteligência Artificial no recrutamento e seleção, é a influência na busca pelo “match perfeito” que, na prática, não existe.
“Imagine que um candidato parece totalmente adequado para uma vaga e para a cultura de uma empresa, mas, na verdade, quem criou essa imagem foi a IA. No fim, quem sofre é ele, porque não vai se identificar com aquele ambiente, nem se sentir suficiente naquele trabalho que, no fundo, não era para ele.”
Além disso, esse fenômeno pode acabar influenciando a taxa de turnover da organização.
Como assegurar que o candidato domina as habilidades?

“Falar em garantir a assertividade pode soar até ilusório, porque 100% de acerto não existe. Mas há formas de trazer mais clareza ao processo. Uma delas são os cases práticos em dinâmicas presenciais, atividades de cocriação e jogos que nos permitem medir as habilidades em tempo real”, diz Raquel Paiva, especialista em RH,
Outro recurso poderoso é a carta de referência do antigo gestor ou do RH da empresa anterior. Se o candidato não tem referências, melhor não arriscar, explica a especialista.
“Além disso, para o candidato, fica a reflexão: será que vale a pena estar em um lugar que não combina com seus valores? Porque se o match perfeito com uma vaga for falso, é exatamente isso que vai acontecer.”
O desafio de detectar trapaças assistidas por IA
A detecção das trapaças está virando um desafio crescente para o RH, mas existem alternativas para tentar garantir a transparência das informações passadas pelo candidato.
Bruno Nunes, que lida diariamente com a Inteligência Artificial, explica que o principal ponto é entender como uma IA “pensa” e criar situações que dificultam o trabalho dela.
Isso pode ser feito a partir de enunciados mais elaborados, envolvendo grandes contextos ou matemática, coisas que a tecnologia generativa tem dificuldade de processar. Ou partir para entrevistas com desafios práticos ao vivo ou presencialmente.
“Algumas alternativas práticas para driblar ferramentas de IA usadas para trapacear em processos seletivos são o pair programming* com um avaliador, a resolução de um case em tempo real com múltiplas pessoas ou simulação de negociação. Quando o candidato precisa demonstrar como raciocina e executa, fica muito mais difícil esconder lacunas de conhecimento”, explica Bruno.
Além disso, continua ele, ferramentas de análise comportamental e entrevistas bem estruturadas ajudam a cruzar informações e validar se o que está no currículo realmente se traduz em habilidade prática.
*Pair programming (programação em pares) é uma técnica em que dois desenvolvedores trabalham juntos em um mesmo projeto ou case. O “piloto” escreve o código, enquanto o “navegador” revisa e sugere melhorias.
Como o RH pode se blindar?
Para Bruno, limites éticos podem e devem ser discutidos, mas regular isso na prática é quase impossível.
“Um bom comparativo é com o uso de calculadoras em provas de matemática: se eu sempre vou ter acesso a uma calculadora, por que não posso usar?. Mas nós entendemos o motivo de não usar na prova, e ele também se aplica a IA. Usá-la para seguir o fluxo, sem conhecimento profundo do assunto, começa a gerar problemas justamente por essa falta de domínio para discutir coisas novas. A Inteligência Artificial está apenas replicando o que já existe em algum lugar, ela não cria coisas totalmente do zero.”
Para evitar contratações induzidas ao erro devido ao uso de IA pelos candidatos para manipular respostas mais alinhadas, o recrutamento pode trazer dinâmicas que exijam raciocínio espontâneo, pedir detalhes reais de experiências anteriores e observar se existe consistência entre o que o profissional diz, o que mostra e o que consegue demonstrar na prática.
“Não é possível proibir o uso de IA, então precisamos garantir que ela não substitua a competência e experiência de verdade. A Inteligência Artificial é um acelerador, não um substituto, afirma Nunes.
Implicações éticas e legais
Diante desse cenário, as implicações da utilização da Inteligência Artificial para trapacear em processos seletivos vão além da simples quebra de confiança entre candidato e empresa.
Do ponto de vista ético, recorrer à IA para mascarar competências fragiliza a cultura organizacional e pode minar valores essenciais como integridade e transparência, pilares fundamentais para ambientes de trabalho saudáveis e produtivos.
No âmbito legal, a situação também requer atenção. Embora a legislação brasileira ainda não trate especificamente desse tipo de fraude mediada por tecnologia, mentir no currículo ou em entrevistas pode ser configurado como falsidade ideológica, sobretudo se implicar prejuízo para terceiros ou danos à empresa contratante.
Especialistas alertam para a necessidade de criar políticas internas claras sobre o uso de IA durante o recrutamento, prevendo sanções em caso de manipulação de informações e estimulando um ambiente de autenticidade nos processos de recrutamento e seleção.
Há, ainda, uma cobrança crescente para que as organizações realizem treinamentos de compliance digital com seus times de RH, capacitando-os para identificar sinais de comportamento suspeito ou inconsistências nos dados apresentados.
Vale ressaltar que a grande vantagem da IA está em potencializar talentos e democratizar oportunidades, não em transformar o processos seletivos ou o mercado de trabalho em um jogo de aparências.
Estamos preparados para a era da IA?
O setor de Recursos Humanos está diante de um dilema urgente: como aproveitar os benefícios da IA nos processos seletivos sem comprometer a ética e a confiabilidade?
Encontrar o equilíbrio entre inovação e transparência será fundamental para garantir seleções justas e eficientes. Ao adotar ferramentas tecnológicas com responsabilidade, promover regulamentações claras e priorizar a avaliação do potencial humano (além das respostas automatizadas), empresas e recrutadores podem transformar esse desafio em oportunidade.
O futuro do recrutamento depende tanto da inteligência artificial, para aprimorar processos, quanto da inteligência humana, para garantir integridade, confiabilidade e transparência.
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