Até onde uma pessoa pode ir para se dar bem? O individualismo precisa estar sempre em primeiro lugar? E o ambiente, molda o comportamento?
Essas são apenas algumas das controvérsias presentes na novela “Vale Tudo”, um dos maiores sucessos da teledramaturgia brasileira da década de 1980 e que, em 2025, ganha um remake. A batalha retratada na telinha entre o “cada um por si” e o “o resto que se exploda”, versus o trabalho íntegro e a ética, continua ainda mais viva do que no Brasil descrito na história assinada por Gilberto Braga há quase 40 anos.
Essa discussão do “eu” em oposição ao “nós”, levantada pela novela, também pode ser levada para o ambiente organizacional.
As disputas individuais como motores de produtividade em detrimento ao companheirismo são realmente o melhor caminho para os resultados satisfatórios?
E ainda por cima, será que essa “guerra silenciosa” dentro dos escritórios não é o que está piorando a saúde mental dos colaboradores, que assim convivem diariamente em um ambiente tóxico?
Se em 6 de janeiro de 1989 o país inteiro parou na frente da TV para finalmente descobrir “Quem matou Odete Roitman?”, tantas décadas depois, minar o vale tudo corporativo pode ser a resposta que os gestores buscam para evitar o desgaste da cultura organizacional, deter a fuga de talentos e eliminar de vez o estresse crônico que derruba a produtividade da equipe a níveis baixíssimos.
Bora saber mais sobre o assunto?
Até que ponto se caracteriza uma competição saudável no escritório?
A competitividade é uma característica presente no comportamento humano e lidar bem com ela é sinônimo de inteligência emocional.
Esse desejo de superação é benéfico para que tenhamos sucesso, especialmente na carreira, seja o indivíduo um atleta profissional ou alguém que não disputa medalhas, mas sim cargos e posições relevantes.
Ao auxiliar no crescimento profissional, a competitividade inclusive pode se materializar em criatividade e produtividade dentro do ambiente organizacional, como apontam positivamente 90,3% dos profissionais entrevistados para uma pesquisa sobre o assunto realizada pela Page Personnel.
Mas será mesmo que validar o “quem entrega mais” promove a criação de um clima favorável dentro do escritório?

“Acredito que o problema não está na competição em si, mas na forma em que se dá a sua interpretação. Quando há transparência no processo, os critérios são bem estabelecidos e há colaboração, fomenta-se o espírito de novas ideias e crescimento profissional”, avalia Aline Sousa, diretora da Expery Co. e TOP3 no prêmio iBest 2024 na categoria RH.
Para ela, a cultura organizacional bem alinhada é o que dita o rumo de uma empresa saudável.
A especialista coloca como exemplo de competitividade saudável os hackathons, eventos colaborativos e intensivos que reúnem profissionais de tecnologia para criar soluções originais em um curto período de tempo, promovidos principalmente por bigtechs e startups, como Google, Meta, Microsoft e Amazon, “cujo objetivo é de inovar, reconhecer e estimular.”
Por outro lado, diz Aline, quando isso vira um jogo desenfreado por resultados, a ansiedade toma conta das pessoas, o foco se baseia em bater metas a qualquer custo e os indicadores de performance viram instrumentos de humilhação e assédio moral, e não de incentivo.
“No momento em que o relacionamento interpessoal é afetado, os gestores não são vistos como inspiração e sim como algozes, e o clima fica insustentável. Isso gera altas taxas de turnover, burnout e causas trabalhistas, o que indica que já passou da hora de rever conceitos”, ressalta.
Para a psicóloga, consultora em liderança e cultura Andréa Krug, a lógica da competição está enraizada nas pessoas, que crescem em meio a ideias em que notas e rankings são muito relevantes e onde os melhores lugares são ocupados pelos que têm os melhores desempenhos.
O que atrapalha a questão da competitividade no ambiente profissional é quando a entrega de metas individuais recebe maior interesse por parte do colaborador do que a atenção com os interesses que norteiam a empresa, e assim há uma quebra de confiança.
“Os setores dentro da organização têm foco de atuação diferentes, mas devem ter as mesmas diretrizes nas ações e um único conjunto de objetivos organizacionais. Quando os interesses individuais ou das áreas é maior do que o da organização, quando as áreas competem entre si e esquecem que a concorrência está do lado de fora, aí a competição começa a não ser mais saudável”, avalia Andréa.
Competição em excesso: o que causa na saúde mental dos colaboradores?
Ambientes excessivamente competitivos são completamente responsáveis pela onda crítica de saúde mental que vivem trabalhadores e empresas no Brasil.
Dados de 2024 do Ministério da Previdência Social são alarmantes e mostram os seguintes números:
- 472.328 licenças médicas concedidas, o que representa um aumento de 68% em relação ao ano anterior;
- 141.414 afastamentos por ansiedade;
- 113.604 afastamentos por depressão;
- 301.348 mulheres afastadas;
- 170.980 homens afastados.
Os efeitos estão relacionados com ansiedade generalizada, depressão, estresse, síndrome de burnout, síndrome do impostor, isolamento social, insegurança psicológica entre outros.
“E tudo isso evolui para problemas físicos, porque o corpo começa a reagir ao que a mente está sofrendo”, explica Aline Sousa sobre as consequências.
Além da individualização do problema, com uma série de doenças e transtornos ocupacionais, locais de trabalho com disputa constante deixam um sentimento de ausência de espírito coletivo e tendem a gerar impactos significativos no clima organizacional, aumentando a pressão interna sobre os colaboradores.
“Com certeza absoluta, a confiança e colaboração ficam extremamente prejudicadas, porque é cada um por si, cada um tentando ‘puxar o tapete’ do outro para mostrar resultado e não ser demitido”, aponta Aline.
De acordo com Andréa Krug, no dia a dia das demandas do escritório, a pressão excessiva por metas faz as pessoas perderem a capacidade de analisar e refletir sobre as questões que se apresentam, operando no “piloto automático”.
“Agimos por impulso, pelos caminhos e soluções conhecidas, perdendo assim a capacidade de reconhecer que muitas vezes estamos diante de um problema diferente, onde a solução de sempre não funciona”, argumenta.
Amparado na questão da valorização da saúde mental corporativa, entra em vigor a partir de maio de 2025 a atualização da NR-1, o conjunto de diretrizes que estabelece as bases para a gestão da segurança e saúde no trabalho (SST).
Essa revisão estabelece que a gestão de riscos psicossociais – fatores no ambiente de trabalho que podem prejudicar a saúde mental e o bem-estar dos colaboradores – deve ser incluída no Programa de Gerenciamento de Riscos das empresas.
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O quanto a empresa perde ao não gerir a competitividade?
A lógica é a seguinte: se o profissional sofre consequências até mesmo sobre a saúde mental em ambientes de “vale tudo” corporativo, a empresa, nem que seja a longo prazo, vai sair perdendo com tudo isso.
Em primeiro lugar, o resultado é a produtividade inconstante do colaborador e até mesmo a inflexibilidade, reflexos de um ambiente onde há muitas comparações entre os componentes da equipe e a consequente insegurança. E esse erro de condução vem especialmente da liderança.

“Quanto mais inseguros, maior é a tendência dos líderes controlarem mais as atividades, gerando pressão e estresse nos times. Assim, eles atuam na microgestão, ficam presos a um comando controlador, não confiam que o time possa fazer tão bem feito quanto eles mesmos, e não delegam. A comunicação perde clareza e empatia, e as orientações não são entendidas. Assim, o esforço por realizar algo, via de regra, se perde”, explica a consultora Andréa Krug.
Ela ainda complementa: “O resultado disso são times pressionados, gestores esgotados e um ambiente pouco produtivo, com baixo engajamento”.
É impossível deixar de lado o fato que esse ambiente agressivo resulta em doenças ocupacionais e psicossociais, que por sua vez deságuam em uma grande lista de questões que elevam gastos para a empresa que poderiam ser evitados.
“O aumento de custos com contratação e a elevada taxa de sinistros de plano de saúde fazem com que esse custo aumente tanto para a empresa quanto para o empregado. Além disso, há questões ligadas ao retrabalho, baixa eficiência e produtividade, comunicação ineficaz, má reputação da marca empregadora, dentre outros”, alerta a diretora da Expery Co, Aline Sousa.
Como o RH pode atuar para transformar esse cenário?
Ao observar que disputas acirradas estão causando impacto negativo no clima organizacional, o RH estratégico precisa agir onde o “calo aperta”, colocando os números na mesa aos líderes e gestores.
“O RH precisa estar munido de embasamento para ter poder de convencimento. Apresentar dados de turnover, absenteísmo, burnout, queda de produtividade, custo da rotatividade, casos de empresas que mudaram a cultura e tiveram ganhos de performance, etc. Mas sempre com dados e pesquisas que comprovam que ambientes colaborativos têm até cinco vezes mais engajamento e resultados reais”, adianta Aline Sousa.
As entrevistadas também apontam o caminho de ações diárias do RH junto ao time de colaboradores. Para Aline, incentivar programas de gerenciamento emocional é um início de alto valor para os resultados positivos.
“É muito válido também, assim como suporte psicológico e envolvimento das lideranças em todo o processo, mostrando o valor de feedbacks estruturados, liderança gentil e empática, comunicação não-violenta, redesenhar processos de gestão de desempenho, olhando para o coletivo”, diz.
Segundo Andréa, as ações devem promover um clima de colaboração e confiança, pois assim “as pessoas compreendem que a responsabilidade está dividida e cada um é dono de um pedaço”.
“Havendo colaboração entre todas as áreas, todos os departamentos, onde cada setor compreende sua responsabilidade e papel no todo, a organização funciona eficazmente”, explica.
Práticas que ajudam a construir uma cultura mais colaborativa
Um ambiente de trabalho saudável cada vez mais passa a ser aquele onde há uma estrutura colaborativa.
Para transformar o espaço organizacional em um lugar em que as pessoas se julgam aptas a participar das decisões em conjunto, com cooperação mútua, é vital que a liderança tenha uma visão humanizada da gestão.
“A liderança tem um papel fundamental nesse processo, seja ao agir de forma colaborativa com seus pares ou colaborativa com seu time. Quando um líder efetivamente se utiliza da escuta ativa, reconhece as diversas contribuições e incentiva que as equipes participem com ideias, está auxiliando no aumento do grau de segurança psicológica”, argumenta Andréa Krug.
Aline Sousa explica que estruturar os indicadores com base em performance individual e em performance coletiva ajuda muito no espírito de equipe e na mentalidade de sucesso compartilhado.
Ela cita ainda outras ações interessantes, como transformar a comunicação para um modo mais horizontal, promovendo mais encontros em busca de uma equipe com maior sinergia, e uma maior tolerância ao erro, transformando em aprendizado e lição do que não se deve ser feito.
“Um indicador extremamente importante é o Employee Net Promoter Score (eNPS) e a pesquisa de clima com foco em questionamentos direcionados à cooperação, liderança participativa e saúde mental”, define a diretora da Expery Co.
“Bem-estar não é custo, é estratégia e investimento”
A pressão por resultados não é sinônimo de entrega bem realizada, e um ambiente saudável, em que todos se ajudam e entendem as suas responsabilidades, vale mais do que um lugar onde as pessoas estão trabalhando somente por obrigação.
“As pesquisas não mentem e revelam o quanto lideranças tóxicas podem reduzir a performance, aumentar a quantidade de afastamentos e gerar tensão ao invés de inspiração. Bem-estar e qualidade de vida não é mimo ou custo, é estratégia e investimento, diz Aline.
“Pode até ser que essa pressão gere algum resultado no curto prazo, mas as pessoas vão ficando exaustas e essa ilusão de produtividade momentânea se transforma em fracasso no longo prazo”, complementa.
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