“Ser mãe é padecer no paraíso”. Retirada de um poema do escritor Coelho Neto (1864-1934), a frase superconsagrada dentro da cultura popular tenta traduzir de forma romantizada e em poucas palavras as dores e delícias da maternidade, com seus altos e baixos.
Desde então, quando o poema “Ser Mãe” foi escrito, muita coisa mudou no mundo: as mulheres saíram do restritivo ambiente doméstico e deixaram de ter a maternidade como único destino natural, conquistando, com autonomia, os espaços que antes lhes eram negados.
O próprio mercado de trabalho, repleto de desafios às mulheres, passou por evoluções significativas nos últimos anos. Boa parte das lideranças e gestores começaram a enxergar a maternidade não mais como um empecilho à produtividade, mas como uma dimensão legítima da vida das colaboradoras, apesar de ainda:
- Quatro em cada dez mulheres relataram já terem sido discriminadas em um processo Recrutamento e Seleção ao contarem sobre a maternidade, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE);
- Apenas 39,3% dos cargos gerenciais no país são ocupados por mulheres, revela a pesquisa “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”;
- Apenas metade das mulheres em idade ativa está empregada. Entre os homens, 80% têm trabalho, segundo levantamento do Banco Mundial
Direitos trabalhistas, como licença-maternidade, salário-maternidade e garantia de estabilidade no emprego desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, e políticas de apoio voltadas às mamães, como o home office, são conquistas valiosas para a carreira profissional das mulheres e para o reconhecimento sobre a parentalidade de modo geral, abrangendo inclusive mães com filhos adotivos.
Esses benefícios, no entanto, estão concentrados em um primeiro momento da maternidade, na chamada primeira infância, “período que abrange os primeiros 6 anos completos ou 72 meses de vida da criança”, de acordo com o Ministério da Saúde.
Se há todo um cuidado com os “baixinhos”, após esse período não há direitos trabalhistas específicos e nem um olhar flexível para mães com filhos “grandões”. Assim, o papel dessas mulheres, que geralmente estão em uma faixa etária de 40+, as deixam invisibilizadas no contexto da cultura organizacional, refletindo também questões como o etarismo, que penaliza profundamente o lado feminino da força de trabalho.
Para entender como o RH e a liderança podem se posicionar sobre isso, convidamos a participar Michelle Levy Terni, mãe coruja do trio Thomas, Alex e Lara, CEO da consultoria Filhos no Currículo, e Susana Zaman, mamãe da duplinha Laura e Nabil, e fundadora da consultoria Maternidade nas Empresas.
Bora lá?
Por que a maternidade pós-primeira infância é negligenciada no trabalho?
É um fato que a maternidade na primeira infância recebe maior visibilidade dentro das empresas, em contraponto com as mães que estão em um segundo momento da vida materna, e isso é algo visto como totalmente natural, segundo as especialistas em consultoria para mulheres no mercado de trabalho.

“Esse momento da primeira infância marca uma transição muito intensa para quem exerce a parentalidade, especialmente para aquelas pessoas que não viveram essa experiência antes. Além disso, a quantidade crescente de pesquisas sobre os impactos dos primeiros mil dias de vida contribui para esse olhar atento para os primeiros anos”
Susana Zaman, fundadora da consultoria Maternidade nas Empresas
Ao mesmo tempo, essa fase posterior costuma ser mais silenciosa e menos visível porque há um entendimento equivocado de que, ao crescer, o filho demanda menos, quando, na verdade, os desafios apenas mudam de forma.
Questões relacionadas ao uso excessivo de telas, à puberdade, às mudanças emocionais e à necessidade de presença ativa e diálogo constante com a escola, são parte do dia a dia de quem cuida de pré-adolescentes e adolescentes.
“Tudo isso exige dos responsáveis uma atenção sensível e uma escuta apurada. Ainda assim, o mercado de trabalho não está maduro para acolher essas complexidades, e poucas empresas incluem esse recorte nos programas de parentalidade”, admite Michelle.
As duas especialistas contam que empresas que estão atentas aos percalços da maternidade contínua buscam ações que apoiam a conciliação entre carreira e parentalidade.
Está inserida aí, por exemplo, o acesso a especialistas por parte de profissionais com filhos, que contam até mesmo com uma secretária virtual para apoio em questões práticas da rotina familiar.
“Esse é um movimento essencial para transformar a parentalidade em uma pauta estrutural, e não apenas episódica”, diz Susana, que fundou em 2017 a Maternidade das Empresas ao lado da sócia Luciana Cattony.
Desafios enfrentados profissionalmente pelas mães dos “grandões”
A maternidade de filhos mais velhos costuma coincidir com a fase em que muitas mulheres enfrentam também a chegada da menopausa, e é aí que entra o etarismo, termo utilizado para descrever a discriminação ou preconceito que ocorre em função da idade, um fenômeno que atinge principalmente pessoas que ultrapassaram a barreira dos 40 anos.
“O mercado ainda vê com ressalvas a mulher 40+ como potência de crescimento, justamente num momento em que ela carrega uma bagagem valiosa de maturidade, resiliência e visão sistêmica”, aponta Michelle Levy Terni.
Mesmo não necessitando de cuidados como o de bebês e crianças pequenas, os adolescentes também precisam de um “porto seguro” e requerem uma atenção especial, por ser essa uma fase de intensa reorganização emocional e neurobiológica.
“O cérebro do adolescente está em pleno desenvolvimento, e por isso essa etapa é marcada por impulsividade, instabilidade emocional e um desejo crescente de autonomia, e que, paradoxalmente, convive com uma grande necessidade de estrutura, escuta e presença. Não é raro que adolescentes se sintam sozinhos ou perdidos quando os pais, sobrecarregados pelo trabalho, se ausentam emocionalmente ou não conseguem estabelecer vínculos de confiança”, afirma a executiva da Filhos no Currículo.
Para os pais que trabalham, alerta Michele, o desafio não está apenas na quantidade de tempo disponível, mas na qualidade da presença.
Ter flexibilidade para estar nos momentos certos, estabelecer diálogos difíceis, participar de reuniões escolares, intermediar conflitos interpessoais ou mesmo episódios de ansiedade, são ações da parentalidade que tem poder decisivo na vida emocional desse jovem.
“Empresas que reconhecem essa necessidade e oferecem políticas que permitem a presença consciente também contribuem, mesmo que indiretamente, para o bem-estar e o futuro dessa nova geração”, ressalta Michelle.
Susana também alerta para outro aspecto que essas mães mais maduras precisam encarar na vida pessoal.
“Muitas mulheres nessa etapa vivenciam o que chamamos de ‘geração sanduíche’, ou seja, são mães que, ao mesmo tempo em que cuidam dos filhos, também passam a se responsabilizar pelo cuidado de pais idosos. Essa sobreposição de papéis aumenta significativamente a sobrecarga emocional e física, exigindo mais suporte tanto no ambiente familiar quanto no corporativo”.
O impacto na progressão de carreira das mães
A ausência de políticas de cuidado contínuo, como o auxílio-creche, que é concedido apenas até que a criança atinja 5 anos e 11 meses de idade, conforme a Lei n.º 14.457/2022, reforça um ciclo de estagnação na carreira das mulheres.
Muitas delas enfrentam um novo pico de carga mental quando os filhos crescem, mas como essa fase é invisibilizada, elas seguem sendo cobradas como se nada tivesse mudado, muitas vezes mesmo sem políticas de segurança psicológica.

“O fim do auxílio-creche, por exemplo, é simbólico. Ele mostra que a empresa considera que, a partir de certa idade, não há mais necessidade de suporte. Esse apagamento das etapas seguintes da maternidade contribui diretamente para a dificuldade de acesso das mulheres a cargos de liderança, especialmente se não há flexibilidade ou um ambiente que compreenda as necessidades reais dessa fase”
Michelle Levy Terni, CEO da consultoria Filhos no Currículo.
Esse abandono institucional, alerta Susana Zaman, contribui diretamente para o chamado “viés de maternidade”, um fenômeno reconhecido em estudos que mostra como as mulheres enfrentam mais barreiras para avançar na carreira simplesmente pelo fato de serem mães.
“Sem esse suporte contínuo, muitas acabam deixando o mercado de trabalho ou não encontram condições para acessar cargos de maior responsabilidade. Por isso, defender políticas de cuidado não é apenas uma questão de equidade de gênero, mas também uma estratégia essencial para garantir ambientes corporativos mais sustentáveis e comprometidos com o desenvolvimento humano”.
“Como diz Lia Luft, carregamos por toda a vida as marcas da nossa infância, e ignorar essa realidade é fechar os olhos para algo que nos afeta coletivamente”, ressalta a consultora da Maternidade nas Empresas.
O RH em prol das mulheres na maternidade contínua
Ainda há uma grande lacuna nas empresas em relação ao cuidado da saúde física e mental das mulheres que estão em fases posteriores da maternidade.
Segundo Michelle, muitas mulheres chegam aos 40 anos já tendo enfrentado o desafio de conciliar filhos e carreira por uma década ou mais, e passam a viver também os impactos hormonais da menopausa, como insônia, alterações de humor e fadiga. “Isso tudo afeta a saúde física e emocional, e impacta diretamente o desempenho”, diz.
Já Susana afirma que a atualização da Norma Regulamentadora Número 1 (NR-1), que entra em vigor em maio de 2025, mas que teve o início da fiscalização com aplicação de multas adiado para maio de 2026, contribui com “avanços importantes” e de maneira nunca vista a temas ligados à saúde mental e aos fatores psicossociais – como a sobrecarga do cuidado – que passarão a ser tratadas com mais seriedade e estratégia dentro das empresas. (Cadastre-se aqui e acesse nosso e-book sobre NR-1)
“Embora ainda não possamos afirmar que há um olhar amplo e suficiente sobre o tema, algumas empresas já reconhecem a importância de apoiar as figuras parentais em diferentes fases da parentalidade, contribuindo para reduzir riscos psicossociais e promover a saúde e o bem-estar das equipes”, explica.
Segundo a CEO da Filhos no Currículo, o RH pode (e deve) trabalhar por essa mulher oferecendo:
- Políticas de apoio à parentalidade contínua;
- Jornadas flexíveis;
- Rodas de conversa;
- Acesso a profissionais especializados;
- Inclusão de cuidados com a menopausa nos planos de saúde corporativos.
“Esse tipo de acolhimento não só melhora o bem-estar da profissional, como gera vínculos de pertencimento e aumenta o engajamento de forma significativa”, afirma.
Outro ponto essencial é o “letramento da liderança”. Susana, da Maternidade nas Empresas, explica que é fundamental formar lideranças humanizadas e inclusivas, “que reconheçam as diferenças e compreendam seu papel ativo na criação de ambientes acolhedores e seguros”.
Longevidade da carreira feminina durante os diferentes ciclos da maternidade

Trabalhar o tema da longevidade da carreira feminina é cada vez mais uma questão chave aos gestores, que devem considerar os diferentes ciclos da maternidade ao longo da vida profissional.
“É preciso reconhecer que a maternidade não é um evento pontual, e sim uma jornada cíclica que atravessa toda a carreira. A mulher com filhos vive diferentes estágios, e todos eles exigem algum tipo de negociação interna e externa entre o cuidado e o trabalho”, aponta Michelle.
Para Susana, o processo de cuidar de outro ser humano potencializa competências fundamentais no ambiente corporativo, como gestão do tempo, priorização, gestão de recursos, criatividade e inovação, e isso deve ser levado em conta pelas lideranças como a qualidade que realmente é.
“Quando uma pessoa se desenvolve enquanto ser humano, ela também se fortalece enquanto profissional, e essa é uma premissa essencial para promover trajetórias consistentes e de longo prazo”, indica a especialista.
Além desse reconhecimento, é fundamental que as empresas ofereçam programas estruturados de desenvolvimento e apoio. Susana dá como exemplo o “Trilha Mães com Carreira”, em que, por meio de encontros coletivos, as mães encontram suporte para uma verdadeira transformação, “saindo do estado de ‘equilibristas’ para se tornarem mais equilibradas”.
“A trilha é um caminho que une sentir e agir, um processo profundo de autoconhecimento em que a mulher descobre que não precisa escolher entre sua família e seus sonhos profissionais. Ela pode abraçar ambos. Tudo acontece em um ambiente de troca, aprendizado, afeto e compaixão. Cada encontro traz uma parte expositiva mediada por uma especialista, junto da participação ativa das mães, criando uma rede de apoio poderosa”.
Como iniciar um ambiente mais acolhedor para todas as fases da maternidade?
O primeiro passo ao RH é conhecer a própria realidade da empresa e de seus colaboradores, explica Michelle. Isso significa aplicar pesquisas, censos ou rodas de conversa para mapear o perfil das pessoas que compõem a organização.
Nesse mapeamento, é extremamente necessária a inclusão da idade dos filhos, os arranjos familiares e as dores mais presentes. A partir daí, é possível pensar em políticas que façam sentido.
“Acolher a parentalidade também significa incluir figuras paternas e outros cuidadores, com a criação de um ambiente em que o pai seja corresponsável pelo cuidado. Essa, inclusive, é uma forma de aliviar a sobrecarga sobre as mulheres”, coloca a CEO da Filhos no Currículo.
Ambas consultorias trabalham por meio de ferramentas que diagnosticam o ponto em que a organização está nesse sentido, proporcionando com uma visão de médio e longo prazo para que haja uma mudança autêntica.
“No ‘Radar da Parentalidade’, estruturamos programas personalizados que atuam em quatro pilares inspirados na antroposofia: identidade (cultura), relações (interações e comunicação), recursos (políticas e benefícios) e processos (fluxos e estrutura organizacional). Entender onde estão os gargalos e oportunidades dentro desses pilares é o caminho para criar um ambiente verdadeiramente acolhedor, não apenas para mães de bebês, mas para todas as fases da parentalidade”, explica Michelle.
“Desenvolvemos o ‘Index da Parentalidade’, uma ferramenta que mapeia as fortalezas da empresa e identifica oportunidades de melhoria no apoio e valorização da parentalidade. Além do score que mede o grau de maturidade, as empresas recebem um relatório detalhado, apontando as áreas de destaque e aquelas que precisam evoluir. O diagnóstico cruza as percepções do RH, da força de trabalho e da alta liderança, oferecendo uma visão estratégica para os primeiros passos”, conta a fundadora da Maternidade nas Empresas.
Conteúdo interessante, né? Assine a newsletter Tudo RH e fique por dentro dos debates mais atuais sobre o do setor.