Pedir demissão nunca foi e nunca será uma decisão fácil de ser tomada. Sair de um emprego por livre e espontânea vontade é uma escolha corajosa que precisa ser muito bem pensada, avaliando prós e contras de deixar uma garantia de estabilidade para trás e seguir novos horizontes.

Mas muitos brasileiros têm “demitido o patrão” nos últimos tempos. Seria esse um fenômeno do mercado de trabalho no período pós-pandemia de Covid-19? Os números indicam que a resposta é sim e que estamos em um novo momento na relação empregador e empregado.

No ano passado, 7,3 milhões de pessoas pediram demissão de seus empregos, um número 7% maior do que o registrado em 2022. Neste ano, o movimento continua forte, pois entre janeiro e junho foram 4.259 milhões de pedidos de desligamentos, alta de 14% conforme sondagem feita pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Se o ritmo for mantido, 2024 deverá bater o recorde do ano passado.

Outro dado impressionante é que, segundo levantamento da LCA Consultores, com base em dados ministeriais, o número de brasileiros que decidiram pedir demissão em abril deste ano foi o mais alto registrado em mais de duas décadas.

Aproximadamente, 734,9 mil pessoas decidiram deixar seus empregos naquele mês, o maior número registrado desde janeiro de 2004, o início da série histórica.

No comparativo com o período pré-pandemia, fica evidente como os números de pedido de demissão deram um salto. Em 2019, o ano anterior à eclosão da epidemia global, cerca de 3,6 milhões de brasileiros pediram desligamento do emprego.

No entanto, mais do que números, esse desprendimento tão evidente pelos postos de trabalho coloca em análise a seguinte questão: por que a relação com o emprego não é mais a mesma?

Bora lá entender?

Fim do home office e a busca por mais flexibilidade

O início da pandemia de Covid-19, em 2020, e as exigências de distanciamento social esvaziaram não somente as ruas, mas também os escritórios.

O home office virou a ordem da vez quando uma boa porcentagem dos trabalhadores – ao menos os que puderam fazer isso – começaram a trabalhar de casa.

Gradualmente, deixar de perder horas no trânsito, ter mais tempo para cuidar de si mesmo, estar mais perto da família e outras vantagens do trabalho remoto começaram a ser percebidas e absorvidas, especialmente pelos colaboradores das grandes empresas.

A epidemia foi controlada e diversas empresas começaram a exigir o retorno dos profissionais aos escritórios. Senão todos os dias, de maneira híbrida.

Segundo Francisco Nogueira, psicólogo, psicanalista e sócio fundador da consultoria Relações Simplificadas, a perda dessa possibilidade aborreceu inúmeros trabalhadores, que decidiram prezar pela qualidade de vida e por questões relacionadas à saúde mental e ao bem-estar, vendo assim a necessidade de procurar novos ares.

Ele inclui, ainda, o aquecimento do mercado de trabalho e o desejo de progredir na carreira como elementos importantes nesse conjunto de motivações.

“É interessante observar que a maioria das razões para pedidos de demissão está relacionada com um novo tipo de relação que as pessoas vêm estabelecendo com a vida profissional. Diferentemente de outras épocas, a estabilidade em um emprego não é mais vista como indicativo de profissionalismo”, diz.

Professora do Insper e especialista em comportamento organizacional, Tatiana Iwai também destaca o mercado de trabalho aquecido para o aumento dos pedidos de demissão, o que possibilita melhores escolhas ao profissional, que “se sente mais encorajado para procurar outras oportunidades que façam sentido para ele”.

O alinhamento entre a vida pessoal e profissional, no entanto, ganhou luz no período pós-pandêmico. “A força de trabalho ficou muito mais sensível a questões relacionadas ao balanço entre vida pessoal e trabalho, e como gerenciar as fontes de estresse no trabalho”, aponta Tatiana.

O fim do home office pegou em cheio boa parte dos trabalhadores, que esperavam políticas e práticas organizacionais de maior flexibilidade.

“Na medida em que um empregador, uma organização, não consegue atender às demandas ou às expectativas de trabalho mais flexíveis para acomodar essa nova necessidade, isso ajuda a explicar a movimentação de profissionais em busca de ofertas de trabalho mais maleáveis”, diz a professora do Insper.

Francisco Nogueira concorda: “Hoje em dia as pessoas aspiram colocações que lhes garantam melhores condições de vida, com maior equilíbrio entre vida pessoal e trabalho, flexibilidade e relações favoráveis à saúde mental, equilíbrio emocional e satisfação com o trabalho, sobretudo entre os trabalhadores mais jovens e qualificados”, continua Francisco Nogueira.

O levantamento “Motivos dos Desligamentos a Pedido, realizado pelo MTE, coloca como motivações para a demissão voluntária:

  • Outro emprego em vista (36,5%);
  • Baixo salário (32,5%);
  • Pouco reconhecimento no trabalho (24,7%);
  • Problemas éticos com a forma de trabalho da empresa (24,5%);
  • Problemas com a chefia imediata (16,2%);
  • Inexistência de flexibilidade da jornada (15,7%).

Questões geracionais nos pedidos de demissão

Gerações diferentes enxergam o assunto da demissão voluntária de maneiras diferentes. Trabalhadores Millennials (1981 a 1996) e da Geração Z (1997 a 2010) têm características e expectativas diferentes em relação ao trabalho, e são os que mais são impactados a tomar decisões no que diz respeito a balancear vida particular e carreira.

“Além disso, uma nova norma social para essa geração é ter vínculos mais tênues, mais temporários com as empresas. Então, na medida em que eles percebem que as organizações não conseguem fornecer práticas que atendam algumas das necessidades deles, para essa faixa etária é mais fácil sair das organizações e procurar outras oportunidades”, explica Tatiana.

Fim da hiperprodutividade e uso da IA

Essas duas gerações também se colocaram à frente a movimentações pós-pandemia que colocaram em xeque alguns dos pilares do mundo corporativo, buscando a valorização da vida pessoal à frente do “viver para trabalhar”.

Em oposição ao “tudo ou nada” do sucesso na carreira profissional, em que se impõe a cultura da hiperprodutividade, surgiram ações como o quiet quitting, as críticas e a luta pelo fim da escala 6×1 e o apoio massivo à jornada 4×3.

Francisco Nogueira diz não ser possível dizer quem veio primeiro, se o crescente número de pedidos de demissão ou os movimentos pós-pandêmicos no mercado.

“As duas coisas parecem fazer parte do mesmo cenário de insatisfação dos trabalhadores com as recentes ondas de perda de direitos, o aumento da pressão por resultados e a precarização das condições de vida e trabalho.”

O fundador da consultoria Relações Simplificadas relaciona esses fatores às novas descobertas a respeito da capacidade produtiva e das possibilidades de utilização de técnicas e tecnologias nesse sentido, especialmente a Inteligência Artificial.

“Hoje todos sabem que é possível adotar uma escala de trabalho reduzida ou mais flexível sem sofrer perdas de produção ou salariais, assegurando, portanto, qualidade de vida e saúde mental para todos. Ou seja, além da percepção de que é possível escolher trabalhar em locais que oferecem condições mais atraentes de trabalho, é preciso considerar que aquilo que se torna uma oportunidade atrativa para as novas gerações é muito diferente daquilo que outras gerações almejavam”, reflete Francisco.

Employee Experience: a experiência do colaborador

Falta de reconhecimento, insatisfação com o salário, ausência de oportunidades de crescimento, ambiente de trabalho tóxico, falta de desafios, conflitos com a gestão, entre outras, são questões que também prevalecem na decisão de quem pede demissão.

“São todas essas dimensões extremamente importantes que compõem a experiência do trabalhador, o que a gente chama de Employee Experience”, afirma a professora do Insper.

São tópicos que podem ser categorizados em relacionamento, recompensas e o trabalho em si, divide Tatiana, sendo esses pilares importantes da experiência do colaborador.

“Na medida em que o trabalhador sente que a empresa não consegue prover uma experiência boa em algumas dessas dimensões, ele eventualmente vai diminuindo o comprometimento no sentido de permanecer na empresa. Assim, de fato podem ser motivos para ele deixar a organização e procurar outras oportunidades”, explica.

O empreendedorismo resulta no aumento de pedidos de demissão?

Cada vez mais brasileiros têm decidido assumir a persona de empreendedor e começar o próprio negócio.

Revela a pesquisa Monitor Global de Empreendedorismo 2023, realizada pelo Sebrae, que em 2023, o Brasil somou 90 milhões de empreendedores ou candidatos a empreendedores, um resultado que faz com que o Brasil esteja entre os países mais empreendedores do mundo.

Segundo Francisco, a relação entre os pedidos de demissão e a vontade de empreender é menos direta do que se imagina, já que 68% dos trabalhadores autônomos no Brasil gostariam de ter carteira assinada, de acordo com a “Sondagem de Mercado de Trabalho” do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).

O que ocorre é que o discurso de ser “dono do próprio negócio” ou “empresário de si mesmo” está baseado no esforço de transpor as regras das relações de mercado às relações humanas, como se tudo o que envolve as pessoas pudesse ser mensurado de forma econômica.

“É a promessa da liberdade do lucro corporativo a uma pessoa individualizada. O lucro muitas vezes não vem, mas a individualização do ônus sim”, alerta.

Como o RH pode minimizar essa situação?

Ter uma cultura organizacional forte e bem-definida é um dos principais elementos que influencia a experiência do colaborador e que pode deter problemas como o turnover e o pedido de demissão.

O Recursos Humanos pode trabalhar capturando essas questões numa pesquisa de clima da organização, com medições periódicas, e prever desligamentos ou saídas.

Então, na medida em que a equipe de RH é capaz de capturar quais são as dimensões mais deficitárias ou problemáticas na experiência do trabalhador, consegue-se desenhar planos de ação ou intervenções que possam melhorar isso”, explica Tatiana.

Oferecer benefícios flexíveis é uma prática que é importante nesse momento, podendo reter talentos e deixar o time de colaboradores mais satisfeitos.

“Os benefícios flexíveis podem sim, de alguma maneira, ajudar a compor uma experiência do trabalho superior e com isso aumentar a satisfação do trabalhador, a propensão dele a ficar na empresa”, explica a professora.

Francisco Nogueira aponta que política de benefícios é uma parte interessante do contexto de reestruturação das organizações do trabalho, mas precisa aparecer em um conjunto de revisões de métodos de avaliação, flexibilidade de horários e locais de trabalho, possibilidade do home office, licençasmaternidade e paternidade expandidas, semana de quatro dias de trabalho, reuniões mais eficientes, processos mais ágeis, responsabilidade social, diversidade e responsabilidade ambiental.

“Se a intenção é atrair e reter os melhores talentos disponíveis no mercado, as empresas precisam ter uma agenda e um olhar que acompanhem os novos anseios das pessoas”, indica o consultor.

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