No Brasil, a fome e o desperdício de comida convivem em um grande paradoxo. São 13 milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade, enquanto 8,7 milhões de toneladas de comida acabam indo para o lixo, segundo dados da Fundação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO). Com o intuito de transformar essa realidade, foi sancionada uma lei que permite mercados e restaurantes doarem alimentos para pessoas em situação de risco alimentar ou nutricional.
A legislação brasileira era, até então, o principal obstáculo para que estabelecimentos conseguissem evitar o desperdício. De acordo com a World Resources Institute, os restaurantes são responsáveis por 15% das 41 toneladas de alimentos jogados fora a cada ano no país.
Um dos principais impasses em relação à comida ser doada está no armazenamento. Estima-se que 50% se perdem durante o manuseio e transporte, enquanto 30% ocorrem nas centrais de abastecimento.
No ranking de alimentos mais desperdiçados está o arroz (22%), a carne bovina (20%), o feijão (16%) e o frango (15%) com os maiores percentuais relativos. Hortaliças e frutas (4%) empatam como a menor quantidade.
Com dados alarmantes ao redor do mundo, tanto da fome quanto do desperdício, o que não falta é comida, mas sim logística de distribuição e acesso. Atualmente, o número de alimentos, que vão para o lixo, é de 1,6 bilhão de toneladas por ano. Entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas está a redução pela metade o desperdício per capita de alimentos no mundo até 2030.
A Lei 14.016/2020, publicada no Diário Oficial da União, permite que supermercados, restaurantes, lanchonetes e outros estabelecimentos dedicados à produção e fornecimento de alimentos, possam repassar os excedentes próprios para consumo por meio de doação.
Sancionada em junho deste ano como medida de emergência em meio ao surto de coronavírus, a lei destaca que o governo federal “procederá preferencialmente à aquisição de alimentos, pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), da parcela da produção de agricultores familiares e pescadores artesanais.
Comercializada de forma direta e frustrada em consequência da suspensão espontânea ou compulsória do funcionamento de feiras e de outros equipamentos de comercialização direta por conta das medidas de combate à pandemia da Covid-19”.
Antes, havia um receio muito grande na doação por parte das empresas e empreendedores por conta das normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No caso, o dono do estabelecimento poderia ser facilmente punido pela contaminação do alimento, mesmo se não tivesse sido armazenado corretamente por terceiros.
Agora, a responsabilidade do comerciante está flexibilizada, visto que a partir da entrega do produto, a comida já está sob o controle de quem a recebeu.
Abaixo reunimos algumas perguntas e respostas em busca de sanar suas possíveis dúvidas:
As regras de segurança alimentar costumam ser tão rígidas, que desencorajam muita gente. Mas dá pra ter salvação! Em alguns países, os repasses de refeições e alimentos que sobram já têm uma política ou plano de ação bem consolidados.
Os Estados Unidos, que possuem um dos maiores índices de desperdício do mundo contam com projetos dedicados exclusivamente ao engajamento e direcionamento das doações.
Como bancos de alimentos geralmente trabalham com grandes quantidades de comida, é preciso encontrar fontes alternativas de cooperação. O Rethink Food NYC faz uso dos excedentes de restaurantes para transformá-las, numa cozinha própria com funcionários e voluntários, em refeições prontas que são distribuídas para parceiros ao redor de Nova York.
Cabe também envolver ou recorrer à tecnologia nesse processo. Os aplicativos, como o Food Connect, o Transfernation e o 412 Food Rescue, ajudam conectar doadores, intermediários e beneficiários. Outra ação interessante é o Food Oasis LA, uma plataforma virtual que funciona como banco de dados, reunindo lugares para encontrar comida saudável em Los Angeles, seja para comprar, plantar ou conseguir doação.
Para estabelecimentos gastronômicos e mercados de menor porte, o ideal é direcionar os alimentos para instituições e/ou pessoas da própria comunidade do entorno, garantindo mais agilidade e frescor à comida, além de fortalecer e criar laços com quem está mais perto do seu negócio.
O restaurante Aizomê, em São Paulo, tem oferecido marmitas para a equipe, incluindo os motoboys, e população em necessidade nos arredores. A compra dos ingredientes que faltam é bancada pela chef Telma Shiraishi.
Em todo caso, também vale a pena consultar organizações não governamentais que fazem o trabalho de retirada e distribuição. Sempre há chances de fazer bons contatos e parcerias que podem ajudar a reduzir os impactos da fome e do desperdício.
Abaixo reunimos mais projetos sociais dentro e fora do Brasil que servem de apoio, engajamento e inspiração para você que está pensando em doar:
Exemplos de iniciativas brilhantes não faltam e agora a legislação é favorável. Os despejos de alimentos impactam negativamente a sociedade, o meio ambiente e a economia. Mas, o Brasil também esbarra em outro problema: a cultura da fartura, pautada pela típica frase “é melhor sobrar do que faltar”, que entra em debate para ser substituída pela cultura de economia.
Visto que os níveis de desigualdade são altos no país, o que chega à mesa é também símbolo de ostentação. Uma pesquisa da Embrapa, divulgada em 2019 em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, aponta que o brasileiro ainda se apega à fartura por hospitalidade e status.
Ao todo, 52% dos respondentes consideram importante ter fartura, enquanto 77% consideram importante que a comida seja fresca. Há um índice antagônico, que revela o quanto a raiz do problema é cultural: 59% disseram não dar importância se houver comida demais, mas ao mesmo tempo 94% dos participantes afirmaram ser importante evitar o desperdício de comida.
O estudo detalha que as sobras são consideradas “comida dormida” e que a importância atribuída a ter sempre comida “fresquinha” contribui para o descarte do que foi servido no dia anterior. Quando armazenada na geladeira, em grande parte, não chega a ser consumida, apenas postergando o descarte. Agora que você tem a visão sobre o prisma cultural, legal e de engajamento social, mãos a obra!
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