É impossível ignorar que o estresse ocupa hoje um papel central no ambiente corporativo, impulsionado, em grande medida, pela sobrecarga de trabalho.
No Brasil, 67% dos trabalhadores afirmam ser influenciados negativamente pelo estresse no trabalho, segundo o relatório People at Work 2023, percentual acima da média global, que é de 65%.
Além disso, o levantamento também mostrou que 57% dos profissionais acreditam que seus superiores não estão preparados para falar sobre saúde mental sem julgamento, o que evidencia uma lacuna importante na gestão de pessoas.
Mas os dados não param por aí, e a situação se agrava quando consideramos os dados de afastamentos: os casos relacionados a transtornos mentais, como ansiedade e depressão, triplicaram nos últimos 10 anos.
De acordo com os números da Agência Brasil, só em 2024, mais de 307 mil pessoas foram afastadas do trabalho por ansiedade e depressão, e o número total de afastamentos por transtornos mentais chegou a 440 mil, um recorde histórico no país.
E a sobrecarga de trabalho é um dos principais fatores de desgaste físico e emocional nas empresas. A pressão por resultados, aliada à hiperconectividade e às mudanças nas dinâmicas de trabalho nos últimos anos, tem levado cada vez mais profissionais ao limite.
Frente a esse cenário, é fundamental evitar que essa realidade se instale – e isso exige muita atenção do RH, além de capacitação das lideranças e de uma cultura organizacional voltada para o equilíbrio.
Para nos aprofundarmos neste tema, trouxemos duas referências no assunto: Ana Silvia Sanseverino Rennó, psicóloga clínica e professora universitária, mestre em Síndrome de Burnout e especialista em ansiedade e Psicologia Positiva, e Fátima Macedo, psicóloga com especialização em saúde mental no trabalho e fundadora da consultoria Mental Clean.
O aumento dos casos de burnout e ansiedade no ambiente corporativo
Como vimos com os dados da Agência Brasil, nos últimos anos, o número de afastamentos por questões emocionais cresceu significativamente.
Nesse sentido, Ana Silvia observa que “a pressão por produtividade, metas inalcançáveis e jornadas exaustivas têm deixado muitos profissionais no limite. Vale ressaltar que o esgotamento não vem de uma hora pra outra – ele se constrói no dia a dia”.
Segundo a professora, “a tecnologia nos aproximou, mas também nos prendeu a uma lógica de ‘estar sempre disponível’, fazendo com que muitos profissionais não consigam se desconectar do trabalho nem fora do expediente, o que impede o descanso verdadeiro”. E isso pode ser um grande problema para a saúde mental dos trabalhadores.
Fátima concorda que estamos diante de um fenômeno multifatorial: “Esse crescimento é resultado de múltiplos fatores. Entre eles, destacam-se: o aumento das exigências no ambiente de trabalho, a hiperconectividade, a pressão por produtividade e a falta de limites claros entre vida pessoal e profissional, especialmente após a pandemia”.
“Além disso, houve avanços importantes na compreensão sobre o adoecimento mental e suas múltiplas causas, incluindo o estresse ocupacional, principal fator para o burnout, o que tem levado mais pessoas a buscar ajuda e obter diagnósticos mais precisos”, complementa Fátima.
Reconhecendo o burnout e diferenciando-o de momentos de alta produtividade
Uma das dificuldades para o RH e para a liderança é perceber a diferença entre um colaborador em um pico de desempenho e alguém prestes a entrar em colapso emocional, mas essa observação é fundamental para evitar a sobrecarga de trabalho.
Ana Silvia explica que “o estresse precede a Síndrome de Burnout e uma das fases do estresse está relacionada a um pico de produtividade. O colaborador ainda está ‘entregando’, mas às custas do próprio bem-estar. Pode parecer que está no auge do desempenho, mas internamente já enfrenta dificuldades para descansar, desconectar ou dizer não. É um ‘alerta silencioso’”.
Ainda, Fátima explica a diferença entre o pico de produtividade e o esgotamento emocional: “O pico de produtividade é pontual, geralmente associado a prazos ou projetos específicos, e tende a vir acompanhado de entusiasmo, senso de propósito e energia”.
“Já a exaustão é persistente, afeta a motivação, compromete o desempenho e costuma vir acompanhada de sintomas como insônia, irritabilidade, dificuldade de concentração e afastamento social”, conclui.

O papel da cultura organizacional
A forma como a cultura organizacional da empresa é construída influencia diretamente a percepção de sobrecarga do RH e dos líderes.
“Em ambientes onde prevalece uma cultura de valorização da hiperprodutividade, da disponibilidade constante e da competitividade excessiva, o excesso de trabalho tende a ser normalizado”, aponta Ana Silvia.
Segundo a psicóloga, isso faz com que colaboradores “hesitem em expressar seus limites, por receio de serem vistos como frágeis, descomprometidos ou ‘menos resilientes’”.
Fátima reforça essa visão: “Culturas organizacionais que valorizam o diálogo, o equilíbrio e a transparência favorecem a identificação precoce da sobrecarga. Já culturas baseadas em controle excessivo, competitividade tóxica e jornadas exaustivas tendem a normalizar o adoecimento emocional”.
“Em ambientes assim, os colaboradores sentem medo de expor fragilidades e acabam silenciando sinais de sofrimento — o que atrasa intervenções e agrava quadros clínicos”, finaliza.
Estratégias para tornar a rotina mais equilibrada
Para Ana Silvia, uma das medidas mais eficazes para evitar a sobrecarga é revisar continuamente os processos e funções dentro da empresa.
“Ter um job description atualizado e alinhado com a prática cotidiana permite identificar sobrecargas ocultas, sobreposições de funções, lacunas de responsabilidade e até tarefas que fogem ao escopo original do cargo”, comenta.
Fátima recomenda que o primeiro passo seja “o mapeamento dos fatores de risco psicossocial, como sobrecarga, falta de clareza de papéis, demandas contraditórias e ausência de apoio”.
“A partir daí, é possível redesenhar fluxos de trabalho, estimular práticas de gestão do tempo, implementar pausas estratégicas, promover o autocuidado e revisar metas e indicadores”, completa.
Liderança como exemplo e agente de mudança
As duas especialistas concordam que a liderança exerce influência decisiva sobre o bem-estar das equipes.
Ana Silvia afirma que “mais do que distribuir tarefas ou acompanhar resultados, liderar é também cuidar – e isso inclui estar atento à saúde emocional das pessoas que compõem a equipe. Quando o próprio gestor respeita seus horários, valoriza momentos de pausa, assume uma postura equilibrada diante do trabalho e demonstra cuidado consigo mesmo, ele transmite uma mensagem poderosa para o time: que o bem-estar também é prioridade”.
Fátima acrescenta que “líderes são referência comportamental e determinam o clima emocional do time. Precisam estar capacitados para identificar sinais de alerta, manter um canal de escuta acessível, incentivar o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, dar feedbacks construtivos e criar um ambiente de segurança psicológica. Além disso, devem cuidar da própria saúde mental para que possam cuidar bem dos outros”.
O que diferencia empresas que cuidam de forma genuína
Ana Silvia e Fátima concordam que a principal diferença está na coerência entre discurso e prática. “O cuidado não aparece só em campanhas esporádicas ou em datas simbólicas, mas se traduz em práticas diárias, coerentes com os discursos da liderança, em políticas internas bem estruturadas e em decisões que colocam as pessoas no centro da estratégia”, diz Ana Silvia.
Fátima resume em uma palavra: “coerência”. Para ela, empresas que realmente cuidam contam com “uma estratégia contínua, com diagnóstico, planejamento, metas, ações integradas e avaliação de resultados. Envolvem a alta liderança, treinam gestores, alinham políticas internas e integram o tema à cultura organizacional, ou seja, as pessoas vivenciam no dia a dia o que a empresa e suas lideranças pregam no discurso”.
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