Das arriscadas apostas em corridas de cavalos nos hipódromos aos bem-intencionados sorteios de prendas em rifas e bingos comunitários, passando pelos luxuosos cassinos em Las Vegas e pelos prêmios milionários das loterias públicas, “fazer uma fezinha” com a possibilidade de ganhar (ou perder) dinheiro é parte do dia a dia das pessoas há muito tempo.

E com a popularização do acesso à internet, novas formas de “tentar a sorte” e ganhar uma grana conquistaram espaço cativo nos corações e mentes dos apostadores.

As bets, casas de apostas virtuais em geral voltadas a eventos esportivos, e os cassinos online, aplicativos de jogos de azar como caça-níqueis, estão a poucos cliques de distância no telefone celular, prometendo a atratividade dos lucros imediatos e infinitos a quem quiser arriscar.

A realidade, no entanto, é que as jogatinas online têm entregado muitas notícias ruins, não apenas para a economia em geral. Apesar da legislação regulamentar a atividade das casas de apostas, não há legalmente uma atenção voltada ao tratamento e à prevenção da ludopatia, o transtorno mental caracterizado pela compulsão incontrolável por jogos de azar.

Essa “compulsão incontrolável”, somada à disponibilidade das plataformas de jogos, tem resultado em vários problemas na vida de milhões de brasileiros, que se endividam cada vez mais na busca pela sorte.

Uma pesquisa de opinião do Instituto Locomotiva revela que:

  • 86% das pessoas que apostam têm dívidas;
  • 64% estão negativados na Serasa
  • 45% dos entrevistados jogadores admitem que as apostas esportivas “já causaram prejuízos financeiros”;
  • 37% dizem ter usado “dinheiro destinado a outras coisas importantes para apostar online”;
  • 30% afirmaram ter “prejuízos nas relações pessoais”.

Ao ultrapassar o universo pessoal ou familiar daqueles que têm vício em apostas e impactar diretamente no ambiente profissional, esse descontrole orçamentário resulta em desgaste de produtividade, baixo engajamento, problemas de relacionamento e, por fim, afeta a saúde mental e o bem-estar do colaborador fragilizado 

Para entender como RH pode estender a mão para apoiar aqueles que passam por problemas financeiros, seja por causa de  jogos de azar ou não, conversamos com Gisela Belluzo Salles, fundadora da consultoria Spectare, e Marli Arruda, especialista em Psicologia Organizacional

Bora lá?

Vício em apostas: é preciso empatia para intervir

Comportamentos repetitivos que se tornam compulsivos, os vícios tem como caraterística principal prejudicar a saúde física, mental, emocional ou social de uma pessoa.

No caso das apostas online não é diferente e, em ambiente organizacional, o comportamento dos colaboradores que caem nas consequências negativas das bets e afins é uma conta que não demora a chegar.

Marli Arruda explica que, em um primeiro momento, é preciso compreender os sinais da mudança de comportamento do colaborador endividado, uma vez que se tornam perceptíveis distrações frequentes que levam a erros, perda de prazos, irritabilidade diante de situações simples, saídas constantes do posto de trabalho, faltas e atrasos sem justificativa.

Mas até que ponto o RH e as lideranças podem intervir ao identificar esses tipos de situações e com quais ações? 

Nesses casos, explica a psicóloga organizacional, o papel do líder é fundamental. É ele quem está mais próximo do dia a dia das equipes e, portanto, pode identificar essas alterações com mais agilidade.

Ela continua: “Esse tipo de abordagem favorece a instalação da segurança psicológica, ou seja, cria um ambiente em que o colaborador se sente confortável para compartilhar suas dificuldades. Se for o caso, poderá até admitir sua relação prejudicial com os jogos”.

Para Gisela Belluzo Salles, assim que é feita a compreensão do problema, a intervenção precisa ser imediata e com extremo cuidado, com oferecimento de apoio não apenas financeiro, mas também psicológico.  

Em primeiro lugar, o auxílio emocional mostra ao colaborador que a empresa se importa com ele e que não há qualquer julgamento. O objetivo é ajudá-lo a superar este vício, seja com o encaminhamento a um profissional especializado, seja apresentando grupos de apoio para pessoas viciadas em jogos de apostas online. “Este é um momento de acolhimento e não de crítica”, argumenta.

Ela ainda ressalta que a ajuda financeira não significa emprestar dinheiro ou realizar adiantamento salarial, mas é a educação financeira que precisa ser disponibilizada.

“É necessário educar este colaborador sobre os problemas financeiros que o vício traz, mostrando sugestões de estancar este gasto”, diz a líder da Spectare.

De acordo com Marli, a atuação das lideranças precisa ser humanizada, com empatia, sigilo e responsabilidade quando um colaborador está enfrentando um vício como o envolvimento com jogos de azar.

“A melhor forma de fazer isso é por meio de um plano estruturado de acolhimento, orientação e encaminhamento, sempre respeitando os direitos do profissional”, aponta.

Segundo Gisela, vale lembrar que este tipo de intervenção precisa ter aderência do colaborador e que se ele não aceitar ajuda, os líderes não devem insistir.

“Por isso é importante ter um trabalho contínuo de conscientização dos riscos dos jogos de apostas online no ambiente de trabalho”, diz.

Como abordar esse assunto com empatia no ambiente de trabalho?

Diante deste cenário, é fundamental pensar em como o ambiente corporativo pode exercer um papel positivo na vida dos colaboradores afetados.

Por isso, a abordagem, diz Marli Arruda, deve ser feita de forma individualizada, com escuta ativa, sem julgamento e sem exposição.

O ideal é que a condução do trabalho seja feita por profissionais do RH com capacitação ou em parceria com psicólogos do trabalho, assistentes sociais e até mesmo com apoio do jurídico da empresa.

“O objetivo não é investigar a vida pessoal do colaborador, mas oferecer suporte quando os impactos começam a interferir no desempenho profissional”, explica a psicóloga.

A empresa não pode exigir que o colaborador aceite um tratamento, porém deve dar todas as possibilidades de ajuda, até mesmo com uma avaliação emocional e psicológica, com consentimento dele, caso exista um programa interno para isto. 

Segundo Marli, os procedimentos devem ser os seguintes:

  • Registrar de forma técnica e impessoal qualquer prejuízo nas atividades profissionais (por exemplo, queda de desempenho, atrasos frequentes, conflitos interpessoais);
  • Se mesmo após o acolhimento e as orientações, o colaborador persistir com condutas que comprometam o clima organizacional, a produtividade ou a segurança, a empresa pode sim adotar medidas administrativas, desde que baseadas em fatos e registros objetivos;
  • O desempenho profissional e a conduta no ambiente de trabalho podem ser legalmente considerados no processo de desligamento por justa causa, desde que estejam bem documentados;
  • Para casos de vício ou adoecimento psíquico, é recomendado antes considerar avaliação médica para verificar se há quadro de transtorno mental ou dependência diagnosticada;
  • Possibilidade de afastamento pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) com acompanhamento de um profissional de saúde.
  • Programas de retorno ao trabalho, caso o colaborador aceite ajuda e esteja em recuperação.

“Além disso, é possível aplicar a justa causa naquele colaborador por mau procedimento, que é quando ele utiliza os instrumentos de trabalho, como celular e notebook, para a prática de jogos de azar. Este tipo de comportamento viola a ética profissional”, explica Gisela, da Spectare. 

“Mas vale lembrar que este é um modo extremo e que deve ser acionado apenas se o ‘plano A’ não surtir efeito. Isso é uma questão de ética profissional, de respeito àquele ser humano que está doente e precisa de ajuda”, complementa. 

Programas de educação financeira são a solução?

Em meio a tanto estresse financeiro causado pelo excesso de dívidas, sejam elas resultados de vício em apostas ou não, programas de educação financeira e de conscientização sobre como manter o nome limpo se colocam como necessários. 

Psicóloga organizacional, Marli Arruda entende que o RH pode desempenhar um papel fundamental ao “implantar um endomarketing estratégico que sensibilize toda a equipe”.

“Ações como rodas de conversa, palestras e workshops devem ter como propósito central proporcionar segurança psicológica, criando um ambiente onde os colaboradores se sintam acolhidos e blindados para expor suas dificuldades com jogos e eventuais dívidas”, explica.

Gisela argumenta que mesmo que a empresa não identifique que há problemas relacionados com vícios em jogo online, a oportunidade de conscientizar sobre os riscos deve ser aproveitada, considerando que as publicidades acerca das bets e dos jogos online são impactantes, com o uso de influencers e até mesmo no patrocínio de camisas de grandes clubes de futebol.

Sobre o modelo ideal dos programas de educação financeira, Marli Arruda acredita que eles devem ser personalizados, especialmente em casos de colaboradores com dívidas elevadas e múltiplas pendências.

Para Marli, nesses cenários o mais importante é restaurar a racionalidade, ou seja, evitar que a pessoa, no desespero, venda seus bens ou tome decisões impulsivas que agravam ainda mais sua situação financeira e emocional.

O programa, de acordo com ela, pode ser realizado em duas frentes principais:

  • “A primeira é a prevenção. É primordial orientar os colaboradores sobre os riscos de enxergar jogos online como formas de investimento. É preciso reforçar que são formas de entretenimento que podem levar ao vício. Também é essencial promover letramento financeiro, estimulando a organização dos ganhos e gastos, e o planejamento de uma reserva destinada ao lazer, sem comprometer o orçamento doméstico”.
  • “A segunda é a correção, ao oferecer programas personalizados para negociação e liquidação de dívidas. Com foco na reconstrução e no equilíbrio, esses programas devem ajudar o colaborador a identificar caminhos realistas e saudáveis para sair do endividamento”.

Saúde financeira e mental: uma relação profunda

Vida pessoal e vida profissional não estão separadas. Ninguém consegue simplesmente “virar uma chavinha” ao começar o expediente e não “levar” para o escritório a briga com a esposa/o marido, a doença dos filhos, a dívida com o banco ou o carro que está há uma semana parado no mecânico.  

Então, é impossível dissociar a estabilidade financeira, a saúde mental e a produtividade dentro do ambiente organizacional. 

“Somos seres humanos e quando temos problemas em um destes pilares, o outro fica abalado. Assim, quando há um problema relacionado com a saúde financeira ou com a saúde mental (ou física) deste colaborador, tenha uma correlação com o trabalho ou não, a produtividade no trabalho e a vida pessoal em si são afetadas negativamente”, analisa Gisela Belluzo Salles. 

Marli Arruda explica que o equilíbrio da saúde mental está diretamente ligado a um tripé fundamental: área financeira, relacionamentos interpessoais e afetivos, e família.

Quando uma ou mais dessas áreas entra em desequilíbrio, é comum que a saúde emocional seja comprometida e, com o tempo, também a saúde física comece a dar sinais de desgaste.

Aliás, pessoas que se envolvem com jogos de azar e apostas online, muitas vezes já estão enfrentando desafios em uma ou mais dessas esferas, e sem perceber, recorrem ao escapismo emocional, ou seja, fazem uma fuga inconsciente para não lidar com questões internas difíceis.

“O problema é que essa fuga tende a agravar a situação, já que os jogos ativam uma sensação imediata de prazer e diversão, funcionando como um alívio momentâneo para tensões acumuladas”, explica a psicóloga.

Na maioria dos casos, a primeira área a ser afetada é a financeira, desencadeando a vulnerabilidade e a falsa sensação de que é possível resolver tudo com dinheiro rápido e fácil.

Desta forma, surgem conflitos nos relacionamentos, o ambiente familiar se desestabiliza, e o bem-estar como um todo é comprometido, em um efeito dominó angustiante.

No trabalho, os sinais se tornam evidentes com a queda de produtividade, dificuldade de concentração, erros frequentes e prazos perdidos, problemas estes que não aconteciam e que agora vem à tona mesmo em tarefas simples”, aponta Marli.

Veja aqui o e-book especial sobre a atualização da Norma Regulamentadora 1, a NR-1, que estabelece a gestão de riscos psicossociais (fatores no ambiente de trabalho que podem prejudicar a saúde mental e o bem-estar dos colaboradores).

Humanização das relações corporativas: uma estratégia de bem-estar

Promover a humanização nas relações corporativas é uma estratégia essencial para o bem-estar dos colaboradores e para o sucesso sustentável da empresa.

Por isso, implementar ações que levam em conta questões como o acolhimento da maternidade e da nova parentalidade, o combate ao etarismo e da construção da diversidade (cultural, racial, gênero, etc.) se provam cada vez mais necessárias, em que é preciso valorizar o capital humano e a cultura organizacional como um todo. 

É nesse contexto que entra a luta por um ambiente onde há atenção sobre o vício em jogos de azar e a relação deles com problemas financeiros, cabendo às empresas incluir temas que estimulem os colaboradores a assumirem a própria gestão. 

“É imprescindível que as empresas passem a considerar a saúde financeira como parte integrante das estratégias de bem-estar e qualidade de vida dos colaboradores. Isso porque o desequilíbrio financeiro, além de afetar diretamente a produtividade, é uma das principais portas de entrada para o adoecimento emocional e, em muitos casos, físico”, ressalta Marli Arruda.

“Quando falamos de humanizar as relações, significa criar ações efetivas, incluindo temas como uma condução saudável das finanças pessoais, ações relacionadas com o bem-estar físico e mental, promoção da alimentação saudável, do exercício físico, da meditação ou quaisquer outras atividades. Elas são importantes para que o indivíduo se conecte com ele mesmo e com os demais, estimulando uma vida mais saudável”, analisa Gisela Belluzo Salles.

Programas de benefícios que visem a qualidade de vida, no trabalho e fora dele, devem ir além de momentos pontuais e campanhas sazonais, mas “estar no DNA, inserido na cultura da empresa”, diz a fundadora da Spectare. 

Segundo ela, pouco adianta incentivar a alimentação balanceada e oferecer um refeitório com poucas opções de pratos saudáveis, ou apoiar ações de bem-estar em um local de trabalho estressante e com relações tóxicas

“Não adianta ‘terceirizar’ a criação de um ambiente de trabalho saudável. Cabe a cada um de nós, empresas e colaboradores, construir pontes, criar conexões e cultivar este ambiente saudável”, afirma Gisela.

 “A saúde financeira não é um tema isolado, pois ela está interligada com a saúde mental, o clima organizacional e o engajamento das equipes. Por isso, empresas que investem em políticas inclusivas e preventivas nesse campo não apenas fortalecem o bem-estar coletivo, mas também constroem um ambiente mais seguro e produtivo para todos”, complementa Marli.

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